Olá!
Segue um breve resumo.
Um começo
Até o início do Estado Novo, era livre o exercício de
ocupações e de profissões no país.
Eram exercidas por qualquer pessoa que comprovasse um ofício
(ocupação), independente de alguma formação escolar, e não havia uma
fiscalização estruturada do poder público sobre quem exercia estas atividades.
Mas a partir de 1930, o Governo Provisório de Getúlio Vargas
iniciou um processo de controle sobre as ocupações e profissões exercidas pelos
brasileiros, especialmente aquelas que possuíam algum interesse
econômico-político ao Estado.
A publicação de normas federais começou organizar o exercício de algumas profissões e a sua fiscalização pelo Estado,
lhes definindo até atividades privativas, como ocorreu para a Farmácia,
Medicina, Enfermagem, Contabilidade, Engenharia, dentre outras.
Dentre as estratégias utilizadas, citam-se três que o Estado usou, isoladamente ou não, para regular as ocupações/profissões no país:
a) A organização sindical: o exercício de algumas
ocupações/profissões exigia vinculação a algum sindicato registrado junto ao
Estado, cujo cumprimento, pelas empresas ou pelos trabalhadores, era
fiscalizado pelo Estado;
b) A organização previdenciária: permitia a criação de caixas de assistência ou institutos de aposentadorias e pensões, sob fiscalização do Estado, mas somente para grupos de trabalhadores com ocupações/profissões semelhantes entre si e aceitas (portanto, reconhecidas) pelo Estado;
c) A organização do exercício profissional: para exercer determinada profissão, o indivíduo devia registrar o seu diploma
de formação escolar, ou equivalente, junto a alguma repartição pública, federal
ou estadual. E a fiscalização sobre este indivíduo, e instauração de
procedimento administrativo para apurar irregularidades e penalização, era
realizada por esta repartição pública.
Essas três estratégias caracterizaram o poder de cartório
(Controle sobre o cadastro da pessoa/empresa/sindicato que exercia ocupações e
profissões) e o poder de polícia do Estado (Capacidade de fiscalizar
estas pessoas/empresas/sindicatos), mas somente sobre as ocupações e
profissões com algum interesse do Estado (Interesse social? Econômico? Político-partidário?).
Pode-se dizer que, a partir do Estado Novo, houve interesse
do Estado pela organização das profissões e a fiscalização sobre quem as
exercesse; talvez como estratégia maior para o Estado controlar a organização social e
política da sociedade brasileira... Enfim.
O fenômeno da autarquização das profissões
Estes aspectos favoreceram, possivelmente, que alguns
segmentos profissionais se aproveitassem desta concepção de Estado e de Governo
na época, e aqueles segmentos com maior representação sob ponto de vista econômico e ou
político possuíram mais força para garantir um controle estatal maior sobre a
regulamentação e fiscalização do exercício destas profissões no país, possivelmente
como estratégia destes segmentos para diminuir a concorrência de indivíduos não
habilitados ao exercício das mesmas, valorizando uma formação escolar mínima para
esse exercício.
Aliado a isso, a fragilidade da infraestrutura do Estado em
garantir a eficiência na função cartorial e de polícia sobre as estratégias já
descritas, como absorver a crescente demanda de registro de profissionais, o
crescente aumento de profissões a serem reguladas pelo Estado e a insuficiência
de equipe técnica para fiscalizar quem exercia estas profissões e punir os
infratores, propiciou a criação de estrutura estatal mais descentralizada para
realizar estas tarefas, denominada de autarquia federal.
Autarquia, no âmbito federal, é um tipo de instituição
pública que:
- Faz parte da Administração Pública Federal: embora não possua
ingerência direta do Estado, deve seguir suas políticas públicas, pois possui
vinculação administrativa com o Estado (geralmente, a algum Ministério);
- Possui relativa autonomia administrativa e financeira para
gerir seus atos, sempre obedecendo as regras aplicáveis da Administração
Pública.
Nessa lógica, a ideia foi organizar cada profissão em um
sistema que mantivesse o controle estatal, mas dando uma certa liberdade para
cada profissão fiscalizar os seus inscritos, e inovando ao estabelecer que cada sistema elaborasse seu código de ética profissional e os processos
administrativos necessários para cumprimento dos objetivos de sua criação.
Cada sistema seria estruturado por uma autarquia federal e respectivas
autarquias executivas de âmbito regional, cada qual composta por representantes eleitos da
respectiva profissão. Como a gestão de cada autarquia decorria de um colegiado
eleito dentre os elegíveis de uma profissão, e como estas autarquias, em linhas
gerais, deviam registrar profissionais e empresas que exercessem a profissão
por elas fiscalizada, tais autarquias foram denominadas popularmente de
Conselhos de Fiscalização Profissional.
Além disso, todo sistema Conselho Federal-Conselhos
Regionais estaria vinculado a algum Ministério de Estado, prioritariamente o do
Trabalho.
As primeiras profissões estruturadas em conselhos de
fiscalização profissional foram a Advocacia, Contabilidade, e Engenharia e Arquitetura,
nas décadas de 1930 e 1940, sob influência do Estado Novo.
A autarquização das profissões traria mais autonomia aos
representantes das profissões regulamentadas pelo Estado para deliberarem sobre o
significado de exercício profissional, seus limites éticos e a estruturação de
procedimentos administrativos para apuração de irregularidades e penalização; e
traria maior visibilidade à sociedade (e ao próprio Estado) para a defesa da lógica “somente está regular para exercer a profissão quem estiver inscrito no
respectivo conselho profissional”.
No entanto, a criação de uma autarquia dependia de publicação
lei federal. A partir da Constituição Federal de 1946, o Executivo deveria
encaminhar Projeto de Lei - PL - ao Legislativo (Congresso Nacional) para análise e
possibilidade de criação da respectiva lei federal; em aprovando esta lei, iria
para análise e sanção, ou não, da Presidência da República. Sem PL, sem lei,
sem conselho.
E aí se iniciou um processo onde a criação de uma autarquia profissional não dependia mais somente do interesse do Estado (Poder Executivo), mas dependia do convencimento do Legislativo sobre a importância e/ou relevância desta criação (haveria algum outro motivo?).
Assim, abriu-se a possibilidade de que a profissão com mais
influência econômico-política na sociedade e no mercado possuía vantagem
competitiva para convencimento de parlamentares (Legislativo) e da Casa Civil
(Executivo) sobre a sua maior importância/relevância social e econômica (e por
que não, político-partidária?) em relação às outras profissões, para a sua
organização como um ente autárquico.
Ou seja, o interesse inicial do Estado pela autarquização
das profissões, para facilitar o seu controle e fiscalização e seguimento das
políticas públicas de Estado, passou a ser compartilhado com o
Legislativo, cujos critérios nem sempre atendiam a celeridade desejada e aos
interesses do Executivo, e/ou nem sempre atendiam ao interesse das próprias
profissões envolvidas, pois um PL poderia ser utilizado como moeda
de troca sobre outras matérias em tramitação no Congresso Nacional.
Além disso, este maior poder de convencimento também
ocorria no Judiciário, pois havendo lei federal sobre a organização e o
exercício profissional de uma profissão facilitaria, por exemplo, a análise de
mérito de questões judicializadas sobre responsabilidade ética e sobre limites
de competência do âmbito profissional.
O fenômeno da desautarquização das profissões
Desde meados da década de 1960-1970, foi se fortalecendo mundialmente
ideais de mudanças nas áreas social, da saúde, econômica e política, dentre eles, ideais relacionados com liberalismo econômico.
De certa forma, isso também aconteceu no Brasil, com mais força a partir da década de 1980, talvez motivado pela crise econômica, monetária e política existente no país naquela época.
A lógica da defesa do liberalismo econômico pressupõe
a defesa de um conjunto de ações que objetivam facilitar a atuação de pessoas
jurídicas (empresas) em um país por meio da redução de dificuldades para
esta atuação, que incluem: tributos sobre o produto/serviço realizado, sobre a
folha salarial, sobre a renda da empresa/sócios, dentre outros tributos; atuação
sindical de trabalhadores; perfil acadêmico dos profissionais contratados; a fiscalização
profissional exercidas pelos conselhos; dentre outras dificuldades...
Claro que esta lógica conviveu, e convive ainda hoje no país,
com a defesa de outras lógicas, como:
- Maior participação da sociedade sobre o controle dos gastos
públicos e sobre a formulação e execução de políticas públicas na área da educação
e saúde;
- Melhor representação da sociedade no processo eleitoral;
- Menor tributação sobre produtos, serviços e capital;
- Maior garantia de direitos sociais.
Enfim, esse jogo de forças contribuiu para a formulação da
Constituição Federal de 1988, e vem contribuindo até hoje com a formulação de
políticas públicas de Estado (que se mantêm independente do mandato de um
Governo) e com regulamentos norteadores de políticas de Governo (que valem durante
um mandato).
A Constituição Federal de 1988 preconiza que é competência
da União a regulação e a fiscalização sobre o exercício das ocupações/profissões
no país, e ela pode ocorrer de diversas maneiras, por exemplo:
a) As ocupações profissionais têm relação
com um ofício, uma prática, uma atividade, que pode ser definida por regras e
listas oficiais, ou não, que fornecem dados e estatísticas úteis para a formulação
de políticas públicas de Estado e/ou de Governo. Dentre as regras/listas
oficiais, existem:
- a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO): sob responsabilidade do Ministério do Trabalho e
Emprego, é utilizada para caracterizar a atividade para a qual um funcionário é
contratado por uma empresa pelas regras da CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho);
- a Classificação Nacional de Atividades econômicas (CNAE): sob responsabilidade da Comissão Nacional de
Classificação, é utilizada para caracterizar a atividade econômica de uma
empresa;
- Catálogos Nacionais de Cursos Técnicos, Tecnológicos e
Superiores – estabelecem requisitos mínimos de formação escolar para as
profissões de nível médio e superior reconhecidos no país; responsabilidade do
Ministérios da Educação e Cultura;
- os cargos descritos em diversas leis e normas publicadas,
que servem de referência para contratação de pessoa física para o serviço
público federal, estadual e municipal.
b) Uma profissão pode contemplar uma ou
mais ocupações profissionais;
c) Para o exercício de algumas profissões no país, é
necessário que o profissional esteja regular junto a algum órgão público, que será
responsável pela atividade de cartório e de fiscalização sobre esta profissão:
- Secretaria Regional do Trabalho: agenciador
de propaganda, artista, atuário, arquivista, guardador e lavador de veículos,
jornalista, publicitário, radialista, secretário, sociólogo, técnico em
espetáculos de diversões, técnico de segurança do trabalho, técnico em arquivo,
técnico em secretariado e historiador (https://bit.ly/3w8J5BG);
- Secretaria Estadual de Saúde: massagista (Lei
federal nº 3.968/1961); no RS: pedicuro, optometrista, protético
(odontologia) (https://bit.ly/3wn4pCk);
- Conselho de fiscalização profissional: há mais
de 30 profissões regulamentadas nesse formato!
No entanto, nunca houve no Brasil uma política pública de
Estado sobre a regulação, o exercício das profissões e sua fiscalização.
Isso é fato!
Desta maneira, desde a década de 1990, fica a impressão de
que essa regulação e fiscalização vem sendo determinada menos pela necessidade
de uma profissão a ser regulamentada, e vem sendo determinada mais pela convicção
político-ideológica de um Governo e/ou do Congresso Nacional escolhido pelo
voto popular, cujo modelo de representação popular favorece a representação de
minorias...
Exemplos que reforçam essa impressão:
- Após 1988, oito profissões foram estruturadas em conselho
profissionais, mas 50% foram às custas da fragmentação de outras
profissões pré-existentes já regulamentadas: da Engenharia e Arquitetura surgiram
os Conselhos Federais de Arquitetura e Urbanismo, de Técnicos Agrícolas e de Técnicos
Industriais; e da profissão de Economia, surgiu a Economia Doméstica. Antes de
1988, ocorreu apenas com a Biologia, que decorreu na Biomedicina;
- O Congresso Nacional já julgou improcedente o
pedido de regulação do Jornalismo no formato de conselho profissional;
- Profissões como Educadores e Pedagogos, Secretariado Executivo,
Tecnologia da Informação, Terapeutas, Optometristas, dentre outros, possuem projetos de lei tramitando
há anos no Congresso Nacional para organizarem-se em estruturas autárquicas;
- Profissões como Esteticista, Cosmetólogo e Técnico em
Estética foram regulamentados, mas sem estrutura autárquica;
- Aprovação de normas legais que favorecem a precarização
das relações de trabalho;
- Tramitação de projetos legislativos que promovem a transformação
dos conselhos profissionais em entidades associativas sem poder de fiscalização;
- Apresentação de projetos legislativos apresentados pelo
próprio Governo e que inviabilizam a sustentação financeira dos
conselhos profissionais;
- Aprovação de pisos salariais nacionais somente para
algumas profissões, e, ainda assim, como moeda de troca em relação a
outras matérias em tramitação e de interesse de parlamentares;
- Aprovação de mudanças curriculares na formação de
profissionais de nível superior, favorecendo a formação mais facilitada e sem
a garantia de que práticas profissionais privativas a uma determinada
profissão sejam oferecidas pela própria instituição de ensino e somente por docentes
com a mesma formação desta profissão;
- Desde 1996, o docente de ensino superior não precisa
estar inscrito em conselho de fiscalização profissional, mesmo que a graduação
exigida pela instituição de ensino seja fiscalizada por este conselho;
- Desde a década de 1990, os Conselhos Profissionais não
estão mais vinculados a um Ministério de Estado, embora continuem sendo
autarquias federais; esta não vinculação vem sendo apontada ao Governo Federal pelo
Tribunal de Contas da União.
Neste cenário, parece que o Governo e o Legislativo não visualizam que são responsáveis pela regulação e fiscalização das profissões, na sua concepção plena, conforme a Constituição Federal, pois, além de não compreenderem que os conselhos profissionais são estruturas de interesse do Estado, são simpáticos à engenharia de desregulamentação das profissões existente no país, alinhada à defesa da liberdade econômica e da liberdade de atuação profissional.
Mas na inexistência de conselhos profissionais, qual estrutura do Estado irá assumir esta função, já que é uma prerrogativa de responsabilidade constitucional?
Estaríamos voltando à época anterior ao Estado Novo, há 100 anos atrás?
A criação de uma autarquia para fiscalizar o exercício
de uma profissão continua dependendo de publicação lei federal. Mas para isso
acontecer, a dificuldade é cada vez maior. Lembrando: sem PL, sem lei, sem profissão
regulamentada, sem conselho profissional.
O futuro é incerto, pois, como já dito, não há no Brasil
uma política pública de Estado sobre a regulação, o exercício das profissões e
sua fiscalização.
Mas isso é tema para outro encontro! Até lá!
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