sexta-feira, 27 de maio de 2022

O fenômeno da autarquização-desautarquização das profissões no Brasil

 

Olá!

Segue um breve resumo.


Um começo

Até o início do Estado Novo, era livre o exercício de ocupações e de profissões no país.

Eram exercidas por qualquer pessoa que comprovasse um ofício (ocupação), independente de alguma formação escolar, e não havia uma fiscalização estruturada do poder público sobre quem exercia estas atividades.

Mas a partir de 1930, o Governo Provisório de Getúlio Vargas iniciou um processo de controle sobre as ocupações e profissões exercidas pelos brasileiros, especialmente aquelas que possuíam algum interesse econômico-político ao Estado.

A publicação de normas federais começou organizar o exercício de algumas profissões e a sua fiscalização pelo Estado, lhes definindo até atividades privativas, como ocorreu para a Farmácia, Medicina, Enfermagem, Contabilidade, Engenharia, dentre outras.

Dentre as estratégias utilizadas, citam-se três que o Estado usou, isoladamente ou não, para regular as ocupações/profissões no país:

a) A organização sindical: o exercício de algumas ocupações/profissões exigia vinculação a algum sindicato registrado junto ao Estado, cujo cumprimento, pelas empresas ou pelos trabalhadores, era fiscalizado pelo Estado;

b) A organização previdenciária: permitia a criação de caixas de assistência ou institutos de aposentadorias e pensões, sob fiscalização do Estado, mas somente para grupos de trabalhadores com ocupações/profissões semelhantes entre si e aceitas (portanto, reconhecidas) pelo Estado;

c) A organização do exercício profissional: para exercer determinada profissão, o indivíduo devia registrar o seu diploma de formação escolar, ou equivalente, junto a alguma repartição pública, federal ou estadual. E a fiscalização sobre este indivíduo, e instauração de procedimento administrativo para apurar irregularidades e penalização, era realizada por esta repartição pública.

 

Essas três estratégias caracterizaram o poder de cartório (Controle sobre o cadastro da pessoa/empresa/sindicato que exercia ocupações e profissões) e o poder de polícia do Estado (Capacidade de fiscalizar estas pessoas/empresas/sindicatos), mas somente sobre as ocupações e profissões com algum interesse do Estado (Interesse social? Econômico? Político-partidário?).

Pode-se dizer que, a partir do Estado Novo, houve interesse do Estado pela organização das profissões e a fiscalização sobre quem as exercesse; talvez como estratégia maior para o Estado controlar a organização social e política da sociedade brasileira... Enfim.


O fenômeno da autarquização das profissões

Estes aspectos favoreceram, possivelmente, que alguns segmentos profissionais se aproveitassem desta concepção de Estado e de Governo na época, e aqueles segmentos com maior representação sob ponto de vista econômico e ou político possuíram mais força para garantir um controle estatal maior sobre a regulamentação e fiscalização do exercício destas profissões no país, possivelmente como estratégia destes segmentos para diminuir a concorrência de indivíduos não habilitados ao exercício das mesmas, valorizando uma formação escolar mínima para esse exercício.

Aliado a isso, a fragilidade da infraestrutura do Estado em garantir a eficiência na função cartorial e de polícia sobre as estratégias já descritas, como absorver a crescente demanda de registro de profissionais, o crescente aumento de profissões a serem reguladas pelo Estado e a insuficiência de equipe técnica para fiscalizar quem exercia estas profissões e punir os infratores, propiciou a criação de estrutura estatal mais descentralizada para realizar estas tarefas, denominada de autarquia federal.

Autarquia, no âmbito federal, é um tipo de instituição pública que:

- Faz parte da Administração Pública Federal: embora não possua ingerência direta do Estado, deve seguir suas políticas públicas, pois possui vinculação administrativa com o Estado (geralmente, a algum Ministério);

- Possui relativa autonomia administrativa e financeira para gerir seus atos, sempre obedecendo as regras aplicáveis da Administração Pública.

 

Nessa lógica, a ideia foi organizar cada profissão em um sistema que mantivesse o controle estatal, mas dando uma certa liberdade para cada profissão fiscalizar os seus inscritos, e inovando ao estabelecer que cada sistema elaborasse seu código de ética profissional e os processos administrativos necessários para cumprimento dos objetivos de sua criação.

Cada sistema seria estruturado por uma autarquia federal e respectivas autarquias executivas de âmbito regional, cada qual composta por representantes eleitos da respectiva profissão. Como a gestão de cada autarquia decorria de um colegiado eleito dentre os elegíveis de uma profissão, e como estas autarquias, em linhas gerais, deviam registrar profissionais e empresas que exercessem a profissão por elas fiscalizada, tais autarquias foram denominadas popularmente de Conselhos de Fiscalização Profissional.

Além disso, todo sistema Conselho Federal-Conselhos Regionais estaria vinculado a algum Ministério de Estado, prioritariamente o do Trabalho.

As primeiras profissões estruturadas em conselhos de fiscalização profissional foram a Advocacia, Contabilidade, e Engenharia e Arquitetura, nas décadas de 1930 e 1940, sob influência do Estado Novo.

autarquização das profissões traria mais autonomia aos representantes das profissões regulamentadas pelo Estado para deliberarem sobre o significado de exercício profissional, seus limites éticos e a estruturação de procedimentos administrativos para apuração de irregularidades e penalização; e traria maior visibilidade à sociedade (e ao próprio Estado) para a defesa da lógica “somente está regular para exercer a profissão quem estiver inscrito no respectivo conselho profissional”.

No entanto, a criação de uma autarquia dependia de publicação lei federal. A partir da Constituição Federal de 1946, o Executivo deveria encaminhar Projeto de Lei - PL - ao Legislativo (Congresso Nacional) para análise e possibilidade de criação da respectiva lei federal; em aprovando esta lei, iria para análise e sanção, ou não, da Presidência da República. Sem PL, sem lei, sem conselho.

E aí se iniciou um processo onde a criação de uma autarquia profissional não dependia mais somente do interesse do Estado (Poder Executivo), mas dependia do convencimento do Legislativo sobre a importância e/ou relevância desta criação (haveria algum outro motivo?).

Assim, abriu-se a possibilidade de que a profissão com mais influência econômico-política na sociedade e no mercado possuía vantagem competitiva para convencimento de parlamentares (Legislativo) e da Casa Civil (Executivo) sobre a sua maior importância/relevância social e econômica (e por que não, político-partidária?) em relação às outras profissões, para a sua organização como um ente autárquico.

Ou seja, o interesse inicial do Estado pela autarquização das profissões, para facilitar o seu controle e fiscalização e seguimento das políticas públicas de Estado, passou a ser compartilhado com o Legislativo, cujos critérios nem sempre atendiam a celeridade desejada e aos interesses do Executivo, e/ou nem sempre atendiam ao interesse das próprias profissões envolvidas, pois um PL poderia ser utilizado como moeda de troca sobre outras matérias em tramitação no Congresso Nacional.

Além disso, este maior poder de convencimento também ocorria no Judiciário, pois havendo lei federal sobre a organização e o exercício profissional de uma profissão facilitaria, por exemplo, a análise de mérito de questões judicializadas sobre responsabilidade ética e sobre limites de competência do âmbito profissional.


O fenômeno da desautarquização das profissões 

Desde meados da década de 1960-1970, foi se fortalecendo mundialmente ideais de mudanças nas áreas social, da saúde, econômica e política, dentre eles, ideais relacionados com liberalismo econômico.

De certa forma, isso também aconteceu no Brasil, com mais força a partir da década de 1980, talvez motivado pela crise econômica, monetária e política existente no país naquela época.

A lógica da defesa do liberalismo econômico pressupõe a defesa de um conjunto de ações que objetivam facilitar a atuação de pessoas jurídicas (empresas) em um país por meio da redução de dificuldades para esta atuação, que incluem: tributos sobre o produto/serviço realizado, sobre a folha salarial, sobre a renda da empresa/sócios, dentre outros tributos; atuação sindical de trabalhadores; perfil acadêmico dos profissionais contratados; a fiscalização profissional exercidas pelos conselhos; dentre outras dificuldades...

Claro que esta lógica conviveu, e convive ainda hoje no país, com a defesa de outras lógicas, como:

- Maior participação da sociedade sobre o controle dos gastos públicos e sobre a formulação e execução de políticas públicas na área da educação e saúde;

- Melhor representação da sociedade no processo eleitoral;

- Menor tributação sobre produtos, serviços e capital;

- Maior garantia de direitos sociais.

 

Enfim, esse jogo de forças contribuiu para a formulação da Constituição Federal de 1988, e vem contribuindo até hoje com a formulação de políticas públicas de Estado (que se mantêm independente do mandato de um Governo) e com regulamentos norteadores de políticas de Governo (que valem durante um mandato).

A Constituição Federal de 1988 preconiza que é competência da União a regulação e a fiscalização sobre o exercício das ocupações/profissões no país, e ela pode ocorrer de diversas maneiras, por exemplo:

a) As ocupações profissionais têm relação com um ofício, uma prática, uma atividade, que pode ser definida por regras e listas oficiais, ou não, que fornecem dados e estatísticas úteis para a formulação de políticas públicas de Estado e/ou de Governo. Dentre as regras/listas oficiais, existem:

- a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO): sob responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego, é utilizada para caracterizar a atividade para a qual um funcionário é contratado por uma empresa pelas regras da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho);

- a Classificação Nacional de Atividades econômicas (CNAE): sob responsabilidade da Comissão Nacional de Classificação, é utilizada para caracterizar a atividade econômica de uma empresa;

- Catálogos Nacionais de Cursos Técnicos, Tecnológicos e Superiores – estabelecem requisitos mínimos de formação escolar para as profissões de nível médio e superior reconhecidos no país; responsabilidade do Ministérios da Educação e Cultura;

- os cargos descritos em diversas leis e normas publicadas, que servem de referência para contratação de pessoa física para o serviço público federal, estadual e municipal.

b) Uma profissão pode contemplar uma ou mais ocupações profissionais;

c) Para o exercício de algumas profissões no país, é necessário que o profissional esteja regular junto a algum órgão público, que será responsável pela atividade de cartório e de fiscalização sobre esta profissão:

Secretaria Regional do Trabalho: agenciador de propaganda, artista, atuário, arquivista, guardador e lavador de veículos, jornalista, publicitário, radialista, secretário, sociólogo, técnico em espetáculos de diversões, técnico de segurança do trabalho, técnico em arquivo, técnico em secretariado e historiador (https://bit.ly/3w8J5BG);

Secretaria Estadual de Saúde: massagista (Lei federal nº 3.968/1961); no RS: pedicuro, optometrista, protético (odontologia) (https://bit.ly/3wn4pCk);

Conselho de fiscalização profissional: há mais de 30 profissões regulamentadas nesse formato!

 

No entanto, nunca houve no Brasil uma política pública de Estado sobre a regulação, o exercício das profissões e sua fiscalização. Isso é fato!

Desta maneira, desde a década de 1990, fica a impressão de que essa regulação e fiscalização vem sendo determinada menos pela necessidade de uma profissão a ser regulamentada, e vem sendo determinada mais pela convicção político-ideológica de um Governo e/ou do Congresso Nacional escolhido pelo voto popular, cujo modelo de representação popular favorece a representação de minorias...

Exemplos que reforçam essa impressão:

- Após 1988, oito profissões foram estruturadas em conselho profissionais, mas 50% foram às custas da fragmentação de outras profissões pré-existentes já regulamentadas: da Engenharia e Arquitetura surgiram os Conselhos Federais de Arquitetura e Urbanismo, de Técnicos Agrícolas e de Técnicos Industriais; e da profissão de Economia, surgiu a Economia Doméstica. Antes de 1988, ocorreu apenas com a Biologia, que decorreu na Biomedicina;

- O Congresso Nacional já julgou improcedente o pedido de regulação do Jornalismo no formato de conselho profissional;

- Profissões como Educadores e Pedagogos, Secretariado Executivo, Tecnologia da Informação, Terapeutas, Optometristas, dentre outros, possuem projetos de lei tramitando há anos no Congresso Nacional para organizarem-se em estruturas autárquicas;

- Profissões como Esteticista, Cosmetólogo e Técnico em Estética foram regulamentados, mas sem estrutura autárquica;

- Aprovação de normas legais que favorecem a precarização das relações de trabalho;

- Tramitação de projetos legislativos que promovem a transformação dos conselhos profissionais em entidades associativas sem poder de fiscalização;

- Apresentação de projetos legislativos apresentados pelo próprio Governo e que inviabilizam a sustentação financeira dos conselhos profissionais;

- Aprovação de pisos salariais nacionais somente para algumas profissões, e, ainda assim, como moeda de troca em relação a outras matérias em tramitação e de interesse de parlamentares;

- Aprovação de mudanças curriculares na formação de profissionais de nível superior, favorecendo a formação mais facilitada e sem a garantia de que práticas profissionais privativas a uma determinada profissão sejam oferecidas pela própria instituição de ensino e somente por docentes com a mesma formação desta profissão;

- Desde 1996, o docente de ensino superior não precisa estar inscrito em conselho de fiscalização profissional, mesmo que a graduação exigida pela instituição de ensino seja fiscalizada por este conselho;

- Desde a década de 1990, os Conselhos Profissionais não estão mais vinculados a um Ministério de Estado, embora continuem sendo autarquias federais; esta não vinculação vem sendo apontada ao Governo Federal pelo Tribunal de Contas da União.

 

Neste cenário, parece que o Governo e o Legislativo não visualizam que são responsáveis pela regulação e fiscalização das profissões, na sua concepção plena, conforme a Constituição Federal, pois, além de não compreenderem que os conselhos profissionais são estruturas de interesse do Estado, são simpáticos à engenharia de desregulamentação das profissões existente no país, alinhada à defesa da liberdade econômica e da liberdade de atuação profissional.

Mas na inexistência de conselhos profissionais, qual estrutura do Estado irá assumir esta função, já que é uma prerrogativa de responsabilidade constitucional?

Estaríamos voltando à época anterior ao Estado Novo, há 100 anos atrás?

A criação de uma autarquia para fiscalizar o exercício de uma profissão continua dependendo de publicação lei federal. Mas para isso acontecer, a dificuldade é cada vez maior. Lembrando: sem PL, sem lei, sem profissão regulamentada, sem conselho profissional.

O futuro é incerto, pois, como já dito, não há no Brasil uma política pública de Estado sobre a regulação, o exercício das profissões e sua fiscalização.

Mas isso é tema para outro encontro! Até lá!

 

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